Li, há poucos dias, uma matéria publicada pela Folha S. Paulo, a qual trazia, já na manchete, a seguinte mensagem: “Médicos estão usando ChatGPT para dar más notícias a pacientes e familiares”. Nisso, veio a minha cabeça, em segundos, a imagem do açoitador (ou espancador, a depender da tradução; a minha é de Modesto Carone para a Companhia das Letras), personagem de Kafka em “O processo”: no capítulo quinto, Josef K. tenta, em princípio, convencer o agressor de que ele não deveria espancar outros dois homens, mas a resposta do empregado, subordinado ao juiz de instruções, foi de negação, momento no qual o chicoteador acrescentou que apenas seguia ordens, era o seu trabalho, logo, deveria continuar seu serviço de forma técnica. De modo semelhante, acostumados com os jargões da medicina e com situações extremas, profissionais contam com a ajuda da máquina para humanizar suas relações com os pacientes, bem como com os entes dos adoentados. Em outros contextos, também, as convenções sociais tornam robôs os cidadãos: cumprem-se funções, e pronto, entretanto o afeto e a compaixão são ignorados. Entre os autoquestionamentos diários que nós deveríamos fazer todos os dias, há um fundamental: a empatia tem espaço nas minhas ações?
Precipuamente, pautamos reuniões em família ou entre amigos e conversas empregatícias; o mundo conectado dita princípios morais e ordens legais documentadas. Na última semana, nós assistimos à conferência da ONU com a participação de robôs humanoides; uma das que roubou a cena foi Sophia, desenvolvida pela Hanson Robotics: “máquinas podem liderar sociedades com mais eficiência do que governantes”, disse. Claro, com exceção dos exageros, não trago aqui o debate sobre a suposta genialidade de objetos eletrônicos ou acerca do receio de ver os espaços sociais tomados por essas criaturas (deixo a representação caricata para a literatura ou para o cinema de ficção científica). Afinal, no meu cotidiano, a dor do outro me incomoda ou me torna mais polido na fala? Sou eu o provocador do sofrimento do meu semelhante? Teria eu capacidade de dirigir a palavra a terceiros com o cuidado necessário, ou eu preciso do filtro alheio por já ter perdido o tato da gentileza? As minhas palavras abraçam ou empurram ao abismo quem me ouve?
Fato é que, em momento de aflição coletiva, como uma catástrofe natural ou uma questão sanitária grave, em geral há uma união bastante romantizada – principalmente pelos veículos midiáticos. Nas redes sociais, palestrantes expunham, perversamente, o lado “benéfico da pandemia de Covid-19”, reforçando que o homem tornou-se “mais humano” e a vida do outro passou a importar mais. Líderes políticos uniram-se em solidariedade (necessária naquele momento) a outras nações, mantimentos foram doados por civis, mensagens diplomáticas, trocadas e publicadas. Um tempo depois, com certo controle da situação pandêmica, o mundo volta ao normal: tropas russas são enviadas à fronteira ucraniana; a China faz manobras militares sobre Taiwan e ameaça um novo conflito; os Estados Unidos derrubam um suposto balão espião chinês em demonstração de habilidade e força; o mundo assiste às intensas políticas contrárias aos refugiados contemporâneos, os quais buscam ajudas humanitárias em terras distantes para, simplesmente, sobreviverem, mas são esculachados. Assim, o coração aquecido de outrora – momentaneamente – volta a ter o mesmo caráter egoísta de sempre. Mas um robô, se bem programado para o bem, deixará de obedecer ao comando um dia, transformando-se numa criatura fria e perigosa?
Logo, o suposto potencial destruidor da máquina não deveria ser uma preocupação atual, porque isso é fruto do modo como ela será alimentada por humanos. Porém, assusta-me a ideia de que o robô seja capaz de articular bem a base de dados do algoritmo, transformando-a em respostas menos técnicas e mais empáticas, com mensagens mais acolhedoras que algo produzido por gente. Também, que ele seja capaz de gerenciar com eficiência situações problemas, a fim de promover bem-estar social ou de propor ideias sustentáveis – diferentemente do homem. Enfim, precisamos esperar um contexto conflituoso para oferecer a mão que cuida? Em uma obra de Kafka, você seria o injustiçado ou representaria o açoitador? E no cotidiano, agora?