O tribunal das redes

Os últimos dias fizeram-me pensar em Carolina Maria de Jesus, na obra “Quarto de despejo”, a qual dizia não suportar quando seus filhos eram agredidos por vizinhos: segundo ela, os adultos, dotados de consciências elevadas, deveriam agir com sabedoria na hora de reprimir alguma atitude errônea provocada pelos menores. Do mesmo modo, lembrei-me com frequência de Dona Florinda, personagem do seriado mexicano “Chaves”, a qual agredia verbal e fisicamente qualquer pessoa que se atrevesse a insultar seu filho Kiko – às vezes recebia Sr. Madruga com uma firme bofetada no rosto. Também, Dona Hermínia está entre as primeiras quando o assunto é a paixão exagerada por seus três filhos: ela insulta, com frequência, com xingamentos cada um deles, porém não admite quando qualquer pessoa os ofende. Realmente, exemplos não faltam para representar a atitude de indivíduos reais e ficcionais os quais perdem o controle emocional quando se sentem lesados a partir do instante em que seus entes queridos são feridos.

Há pouco, o mundo presenciou um crime cometido contra uma famosa família brasileira em Portugal, e houve contra-ataque. No Instagram, no Twitter e no Facebook, um vídeo viralizou: Giovanna Ewbank aparece no centro da gravação reagindo, de modo bem inflamado, a um insulto racista sofrido pela família e por um grupo de angolanos. Ela, Bruno Gagliasso e as três crianças divertiam-se em um restaurante da Costa da Caparica, em Portugal. Instantaneamente, as redes sociais foram incendiadas com comentários no Brasil e no mundo: de um lado, gente torcia para a mãe; de outro, uma multidão condenava a reação da apresentadora em defesa dos violentados.

De fato, precisamos pontuar: a) racismo e injúria racial são crimes, logo, o agressor é criminoso; b) ninguém consegue imaginar a dor dos pais quando a honra de suas crianças é diminuída; c) a questão central da discussão jamais deveria ser a reação da mãe, mas o crime e a recorrência dele, todos os dias, todas as horas, neste instante; d) qual mãe seria polida ao reagir a um crime cometido contra seus filhos? Em tempos de muita fala e pouco ouvido, a reflexão norteia mais do que qualquer tentativa de posicionamento avulso. Indubitavelmente, as discussões on-line tomaram um rumo ao qual um debate sério jamais poderia levar: Giovanna foi mais criticada do que a criminosa. Enfim, eis o retrato do racismo estrutural brasileiro.

Ademais, trago um discurso que assume um local de fala importante. Em entrevista recente, Carla Akotirene, pesquisadora negra, doutora em Estudos de Gênero, Mulheres e Feminismos da UFBA, afirmou que a obrigação de enfrentar o racismo não é apenas da vítima, mas de toda a sociedade, a fim de que quem sofre a violência tenha amparo e força para lidar com qualquer situação lamentável. Nessa ótica, a parte a qual deve temer é o racista, e não o violentado. De fato, o enfrentamento ainda caminha a passos de tartaruga: o país que escravizou povos africanos durante séculos, quando não investe em políticas públicas, propagandas ideológicas e, principalmente, educação, não consegue abandonar a triste herança calhorda da escravidão.

Enfim, Bruno e Giovanna representam centenas de milhares de famílias que, todos os dias, sofrem racismo. Em reforço, isso é cruel, é desumano, é inadmissível. Por isso, o debate é meu, é seu, é de toda a nação. Quem o presencia, mas evita denunciar, concorda. Nesse processo, fica a questão: qual o papel de um cúmplice em um crime? Estejamos sempre do lado de cá, o humano.

Professor Franco de Paula é graduado em Letras pela Unesp de S. J. Rio Preto. Além disso, possui formação em Pedagogia e pós-graduação em Gestão e Organização da Escola com Ênfase em Coordenação e Orientação Escolar