Obrigações

De Kafka a Camus, o absurdo cotidiano é retratado constantemente em obras recentes. Entre eles, o que se destacou em minhas reflexões recentes, enquanto eu preparava aula, foi a relação das pessoas com o trabalho. De fato, vivemos um paradoxo do qual dificilmente conseguiremos livrar-nos: o trabalho pode ser prazeroso, mas ao mesmo tempo é obrigação. Por esse motivo, a boa escolha é muito importante: já que não há como fugirmos das labutas, o importante é escolhermos bem aquilo que nos acompanhará por longos anos, diariamente. Em suma, conseguimos encontrar felicidade nas obrigações?

É fato, a forma como lidamos com as condições laborais interfere diretamente nas sensações. Em classes recentes, entre os temas trabalhados na disciplina de Redação, abordei questões relacionadas à saúde mental, entre elas, a Síndrome de Burnout: esgotamento relacionado a questões laborais absurdas. Imediatamente, lembrei-me de alguns personagens que representam bem a condição atual: Gregor Samsa, de Kafka, quando se encontrou metamorfoseado num inseto monstruoso, causou estranhamento em sua família, mas nenhum incômodo foi maior que o seu impedimento de cumprir sua função de caixeiro-viajante. Nesse viés, a preocupação da família remonta um quadro atual e, muitas vezes, degradante: a função social sobrepõe-se à naturalidade, e a força do ofício nos obriga a, infelizmente, abandonarmos o pouco de humanidade que ainda nos resta.

Outrossim, vastamente representado nos contextos literários modernos, o homem despreocupado com as aparências é uma ironia em relação às preocupações que nos afastam da sensibilidade. Na mesma ótica, Marseault, protagonista de Camus em “O estrangeiro”, indiferente a tudo, até diante da um caso triste, a morte da mãe, coloca na balança o peso de ter de se afastar momentaneamente de suas obrigações. No entanto, a maioria trabalha com aquilo que apareceu, já que as contas chegam. Por conta disso, colocarmo-nos alheios aos olhos de terceiros não parece uma função possível. Dessa maneira, a ficção critica, mas não representa a realidade hodierna, pois as personagens podem ser alheias ao trabalho, mas a função social é nosso único meio de sobrevivência, em tempos de altos preços e poucas perspectivas de ascensão social – trabalhamos por sobrevivência, às vezes em condição precária, e não por satisfação.

Em suma, não podemos ter o luxo (talvez nem queriam isso) de pessoas ficcionais. Muitos seres esgotam-se (sem ferramenta de trabalho, em situações degradantes ou cansativas ao extremo, sem boa remuneração). Com isso, a mente sensibiliza-se. De fato, o corpo aponta sinais: não seria a hora de pararmos? Não seria o momento adequado para refletirmos? Não seria correto gastarmos as poucas energias restantes para cuidarmos dos sinais psicológicos? Gregor Samsa e Marseault são realistas no contexto das obras, mas afastam-se da realidade porque ninguém, hoje, pode se dar ao luxo de passar dias em repouso (ainda que forçadamente), como o primeiro, nem ignorar os julgamentos alheios, como o segundo. A síndrome fica para depois: a fome é prioridade em tempos absurdos.

Professor Franco de Paula é graduado em Letras pela Unesp de S. J. Rio Preto. Além disso, possui formação em Pedagogia e pós-graduação em Gestão e Organização da Escola com Ênfase em Coordenação e Orientação Escolar.