Abandono generalizado

Rubem Fonseca, cancelado em 1975 pelo então ministro da justiça, após a publicação de “Feliz ano novo”, inicia o segundo período de um de seus mais célebres contos assim: “Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.” É certo, hodiernamente, que o maior contista contemporâneo inserisse um protagonista dentro da casa abandonada de Higienópolis, embora preferisse o contexto carioca, justamente porque a degradação e a perecibilidade dos Bonetti seria um prato farto para montar um quebra-cabeça que só um grande maestro da narrativa conseguiria encerrar – embora a história de Margarida não tenha tido um destino o qual agradasse os leitores da vida real. Nessa ótica, vale destacar uma crucial análise: em tempos cruéis, distrações são fundamentais para distanciar a criticidade daquilo que realmente importa, e se não é tempo de festejos ou confraternizações tradicionais, como Carnaval, Festa Junina e Ano Novo, os dirigentes sociais sempre inventam qualquer polêmico assunto. Em suma, necessitamos dessa dual lógica societária pois, se por um lado a vida cotidiana endurece nossas perspectivas do que ainda está por chegar, por outro a distração amolece o espírito e confere o sopro o qual nos impulsiona adiante.

Nas últimas semanas, acompanhamos nos noticiários fatos importantes para o futuro do Brasil: a corrida eleitoral, a discussão sobre o homeschooling, o mandado judicial que abriu as portas da mansão em um dos bairros mais caros do país. Apesar de serem assuntos semanticamente incompatíveis, todos movimentaram debates em setores da sociedade brasileira. Todavia, o último gerou maior potencial midiático, e as especulações ganharam as redes sociais, os veículos de imprensa nacionais e internacionais, além de promover discussões familiares, escolares, judiciais. Juristas legítimos comentaram; juízes populares deram a sentença da misteriosa moradora a qual sempre aparece à janela em horários pontuais, segundo os vizinhos. Houve julgamento em massa, embora nem a justiça americana tenha conseguido dar a desfecho que o FBI esperava, caso Margarida tivesse retornado aos Estados Unidos para ser devidamente julgada e condenada. De fato, palpitaram de diversas formas, curiosos pelo que distancia de causas sociais: não querem combater um sistema inteiro de escravização contemporânea; querem, pois, julgar uma pessoa, achar um culpado, mascarar os desastres sociais que assolam a nação em 2022: desigualdade social, fome, falta de saneamento básico e ameaça política.

Em certo ponto, vejo que estamos fartos de realidade. A esse respeito, buscamos o mistério: a atração se configura pelo desconhecido, pelo que poderia ser. No Carnaval, vestimos como em nenhum momento do ano; no Arraial, comemos como se a vida fosse apenas um instante e não houvesse consequência dos exageros, na Virada, abraçamos quem amamos e aguardamos dias prósperos. A farra, de alguma maneira, faz parte da predileção de alguns momentos em detrimento do outro, embora tenhamos a necessidade da precaução, da medida, diferentemente das personagens de Fonseca: exageradas, cruéis, desmedidas – seriam o reflexo de muitos brasileiros? Independentemente da distração, a polêmica sempre gira em torno do individual, e não se expande muito a reflexão e nem a indignação gera revolta massiva. Assim, pensemos: quantas funcionárias como a doméstica dos Bonetti não existem atualmente no país? Quantas pessoas denunciam as atrocidades de hoje? Quantos são mantidos em cativeiro ou traficados como mercadorias? Até que ponto a revolta gera luta diária contra aquilo que não deveria existir?

Logo, dualidade deve ser encarada com a mesma seriedade: ao mesmo tempo em que investimos no entretenimento, precisamos pensar que o engajamento social deve gerar igual motivação. Encararmos um caso motivados pela curiosidade – o que tem lá dentro? Quem vive ali? A quem pertence? – não pode superar o fato de lutarmos todos os dias por um Brasil mais justo, onde ninguém morra de fome, seja escravizado ou tenha seus direitos violados de outra maneira. Não há felicidade na história de Higienópolis nem tristeza no país das praias paradisíacas, do futebol, do Carnaval, das Festas de São João, da queima de fogos em Copacabana: há abandono moral. Que o desfecho da mansão sirva não como entretenimento, mas como motor da mudança. Contra as injustiças. Para o bem. Sempre.

Professor Franco de Paula é graduado em Letras pela Unesp de S. J. Rio Preto. Além disso, possui formação em Pedagogia e pós-graduação em Gestão e Organização da Escola com Ênfase em Coordenação e Orientação Escolar