A relativização on-line da verdade

Adquiri, há um ano, uma obra comprada no aeroporto Santos Dumont, após horas esperando o voo, atrasado, que partiria a São José do Rio Preto. Naquele momento, eu retornava de uma viagem de Ano Novo. Ali, sentado e inquieto, mergulhei no livro: Tom Nevinson era suspeito de um homicídio que não cometeu em “Berta Isla”, romance do espanhol Javier Marías. Às vezes, eu era conduzido a pensar que a personagem principal fosse criminosa, efeito conferido, pincipalmente, pelas afirmações constantes do suposto ato diretamente ligado a Nevinson. Esse fenômeno literário ocorria pelas repetidas acusações. Da literatura à realidade, nas redes sociais, as verdades são construídas principalmente pelas “viralizações”: todos os dias, embora eu não siga páginas de fofoca, meus seguidores compartilham demasiadamente questões relacionadas à vida pessoal (artistas são os focos). Desse modo, há a relativização dos fatos: se disseram, propagaram, mais pessoas aderiram, compartilharam, os atingidos incomodaram-se, logo é verdade. Infelizmente, o boato mata, entretanto foi naturalizado por páginas de fofoca e “reality shows”, discurso cruel aderido, também, pelo setor político.

Há algumas semanas, acompanhei uma reportagem que remontava fatos envolvendo a morte de uma jovem mulher. Em sequência à matéria jornalística, o texto afirmou que o agravante que desencadeou o suicídio foi a propagação em massa de uma imagem a qual supostamente revelava um caso amoroso entre Jéssica Canedo, vítima, e o humorista e influenciador Whindersson Nunes, também atingido pelo boato. Posteriormente, li os comentários: era raro algum que condenava a atitude da página Choquei, principal propagadora da bisbilhotice. Nesse viés, observei o que já é senso comum, o potencial destrutivo e, paradoxalmente, lucrativo da difamação da vida alheia. Assim, há uma audiência que dita o jogo da realidade virtual, a qual, em consequência, molda o gostar dos indivíduos todos os dias.

Em se tratando de jogo, começou, nesta semana, o BBB24, um “reality show” que se vende como entretenimento. Esse programa televisivo é alimentado pelas páginas das redes sociais e pelos veículos midiáticos “sérios”. Na casa, os participantes se combatem o tempo todo, por meio de acusações, fofocas, brigas e até ofensas criminosas, visíveis nas últimas edições. Aqui fora, empresas patrocinam engajamentos, promovidos, principalmente, por… Fofoca. E não importa o potencial destrutivo das intrigas e nem a alienação nacional: se vende, então é bacana. Nesse contexto, a Rede Globo espera um faturamento de 1 bilhão de reais na edição 2024 do “reality”. Então, não existe uma nação educadora sem a problematização do poder destrutivo dos boatos ou das acusações descabidas, romantizados pelos próprios formadores de opinião e alimentados pelos líderes sociais, os quais polarizam suas ideias, atacam seus oponentes, inventam narrativas destruidoras de reputação e alimentam o ódio contra quem pensa diferente: o outro deve ser aniquilado.

Destarte, conviver tem sido sinônimo de combater, dia após dia, o diferente: a autenticidade, hoje, depende de quem eu sigo e em quem eu acredito. Dessa forma, a informação, formadora de opinião, relativiza a verdade, e o que é consumido forma o modo como o cidadão enxergará o mundo; um absurdo constantemente propagado é tido como o fato. Enfim, o Nevinson da ficção seria emparedado na realidade e vítima da Choquei.

Professor Franco de Paula é graduado em Letras pela Unesp de S. J. Rio Preto. Além disso, possui formação em Pedagogia e pós-graduação em Gestão e Organização da Escola com Ênfase em Coordenação e Orientação Escolar.