É boato que estudo feito pelo SUS comprova eficácia da ivermectina no combate à Covid-19

Boato – O SUS realizou um estudo que mostra que a ivermectina é eficaz no combate à Covid-19. Remédio reduz 46% das mortes causadas pela doença.

Como já falamos, o movimento antivacina e os negacionistas da pandemia voltaram a atacar com tudo nos últimos dias. No meio de tantas fake news, até um tema enterrado voltou a circular: o tratamento da Covid-19 com ivermectina.

De acordo com mensagens que linkam pesquisas realizadas por um grupo de médicos defensores do remédio para tratamento da Covid-19, o SUS realizou um estudo que comprovaria que o tratamento precoce com o remédio reduziria em 46% o número de mortes por Covid-19. Leia algumas das mensagens que circulam online:

Versão 1: Neste final de semana em Congresso Mundial de Medicina, realizado em Brasília, o SUS, mostrou um estudo, que a IVERMECTINA, preventivamente, reduziu em 46 % o número de mortes por Covid-19, foi disponibilizado na INTERNET. Estudo devastador, que ocorreu em ITAJAÍ. E agora?????

Versão 2: estudo feito no SUS demonstra eficácia de 48% na redução da mortalidade da Covid-19 Entre os 220 mil habitantes da cidade de Itajaí envolvidos no estudo, 133.051 (60,3%) tomaram a ivermectina e 87.466 (39,7%) não tomaram o medicamento oferecido pela prefeituraDedo indicador apontando para baixo (costas da mão)

Versão 3: Você que queria a comprovação científica da Ivermectina, você que não prescreveu o remédio e deixou pessoas morreram, o SUS fez um estudo com cientistas de vários locais do mundo que comprovaram sua EFICÁCIA. Só não estou vendo a divulgação desta benção na mídia aberta, covardes!

Estudo feito pelo SUS comprova a eficácia da ivermectina no combate à Covid-19?

A mensagem, assim como tantas outras durante a pandemia (sério, esse pessoal é maçante demais), se espalhou em redes sociais como forma de pressão contra vacinas e a favor dos tratamentos alternativos. Só há alguns detalhes: o estudo não é do SUS e nem de longe é a prova de que a ivermectina é a cura da Covid-19.

Já explicamos, e não foi uma vez, que a ivermectina como uma “opção de cura” para a Covid-19 é um assunto que já foi mais do que enterrado pelo meio científico. Em um A Semana em Fakes, explicamos porque o tratamento em questão (assim como o tratamento com hidroxicloroquina) não é recomendado para a Covid-19. Relembre um pouco do histórico do remédio:

Quando a OMS anunciou que a Covid-19 havia se tornado uma pandemia, lá em março de 2020, cientistas passaram a se debruçar na busca de uma vacina e um tratamento contra o novo coronavírus (que já nem é tão novo assim). Uma das estratégicas adotadas por pesquisadores foi testar drogas já existentes contra o vírus.

Dentre outras medicações que se mostraram “promissoras” no início da pandemia, estava a ivermectina. O remédio, utilizado inicialmente como antiparasitário em humanos e animais (como o gado), surgiu como esperança contra a Covid-19 no dia 3 de abril de 2020. Naquele dia, pesquisadores da Monash University (da Austrália) divulgaram resultados de um estudo in vitro com o remédio.

Infelizmente, e assim como tantos outros casos, o anúncio foi replicado na mídia mundial com a simplificação que fez o remédio ser apontado como a cura do coronavírus. Títulos como “ivermectina mata coronavírus em 48 horas” não demoraram a surgir. Em um cenário no qual as pessoas têm dificuldade de ler uma notícia completa (ainda mais da editoria de Ciência e Saúde), muitos deixaram de se atentar a alguns detalhes que vamos listar abaixo (até para facilitar a leitura):

1) Os testes que mostravam a eficácia da ivermectina contra a Covid-19 foram feitos in vitro. Ou seja: células cultivadas em laboratório foram infectadas pelo novo coronavírus e colocadas em um tubo de ensaio junto com o remédio em questão.

2) Passar nos testes in vitro não significa curar a doença. A própria Monash University divulgou um status sobre as pesquisas. Para poder ser aprovada contra a Covid-19, a ivermectina precisaria passar por testes pré-clínicos (na qual seria ajustada a dose eficaz contra a doenças) e clínicos (fases I, II e III) para verificar segurança e eficácia. Só aí o uso “clínico” estaria aprovado.

3) Não foram poucos os remédios que se mostraram eficazes em testes in vitro, mas não passaram em testes clínicos (a cloroquina é um exemplo).

Na época do estudo e nos meses seguintes, tivemos que desmentir por duas oportunidades (aqui e aqui) que a ivermectina seria a cura “comprovada” da Covid-19. Porém, a desinformação sobre o remédio só aumentou com o passar do tempo.

Em julho, em um período no qual a OMS descontinuou os testes com a cloroquina, a ivermectina passou a ser apontava como a “bala de prata” contra a Covid-19. A tese só se fortaleceu quando, sem nenhuma indicação de eficácia, autoridades e personalidades passaram a defender o uso do remédio como “preventivo” contra a Covid-19 (como é feito com parasitas).

Teses bizarras como a que apontava que a ivermectina “aniquilava a Covid-19” se usada preventivamente, que funcionaria mais do que a vacina e que poderia fazer parte de um “kit contra Covid-19” viralizaram na internet.

A fake news de que a ivermectina “é a cura” foi reforçada por notícias falsas “anexas” como a de que a Anvisa chegou a recomendar uma “dose do remédio” para combater o coronavírus, que governadores boicotaram o remédio, que Biden estava distribuindo o remédio nos EUA e até de que o médico Anthony Wong havia sido assassinado por “defender o remédio”.

Por mais que muitas dessas notícias falsas sejam inverossímeis para alguns, elas ajudaram a reforçar ações que transcenderam o “curtir e compartilhar”. Com a ajuda da desinformação, o governo passou a incentivar um “tratamento precoce” com ivermectina e outras drogas sem eficácia comprovada e pessoas correram às farmácias atrás do remédio.

Felizmente (ou infelizmente, porque, de fato, queríamos que o remédio fosse eficaz contra o coronavírus), a situação parece começar a mudar. Algumas pessoas que defenderam o remédio publicamente morreram de Covid-19, nenhum estudo confiável mostrou a eficácia do remédio e, nesta semana, a Merck, uma das empresas que fabrica a ivermectina, anunciou o que todos deveriam saber: que não há eficácia comprovada do remédio contra a Covid-19.

E, por mais que algumas pessoas, empresas e autoridades ainda resistam, não há como negar a ciência. E o fato é que a ivermectina é, sim, uma medicação eficaz… contra infecções causadas por alguns parasitas em seres humanos e animais. Contra a Covid-19, o remédio não funciona nem antes, nem durante, nem depois da infecção.

Da época que escrevemos o texto (fevereiro deste ano) até agora, tivemos mais algumas novidades em relação à ivermectina. Em março, a OMS ressaltou que a ivermectina não deveria ser utilizada pela população. Em dezembro, a FDA lançou uma nota explicando porque não devemos utilizar ivermectina para combater à Covid-19. Veja o que foi escrito pela agência dos EUA:

O FDA não autorizou ou aprovou a ivermectina para uso na prevenção ou tratamento de COVID-19 em humanos ou animais. A ivermectina é aprovada para uso humano no tratamento de infecções causadas por alguns vermes parasitas e piolhos e doenças da pele como a rosácea. Os dados atualmente disponíveis não mostram que a ivermectina é eficaz contra COVID-19. Ensaios clínicos avaliando comprimidos de ivermectina para a prevenção ou tratamento de COVID-19 em pessoas estão em andamento. Tomar grandes doses de ivermectina é perigoso.

Se o seu médico prescrever uma receita de ivermectina, preencha-a por meio de uma fonte legítima, como uma farmácia, e tome-a exatamente como prescrito. Nunca use medicamentos destinados a animais em você ou outras pessoas. Os produtos de ivermectina animal são muito diferentes daqueles aprovados para humanos. O uso de ivermectina animal para a prevenção ou tratamento de COVID-19 em humanos é perigoso.

Para completar, a Conitec e o próprio Conselho Nacional de Saúde publicaram documentos que não recomendam o uso da ivermectina para o tratamento da Covid-19 em dezembro deste ano. Veja o que diz o relatório sobre o fármaco: “Sugerimos não utilizar ivermectina em pacientes com suspeita ou diagnóstico de covid-19, em tratamento ambulatorial”.

Como vocês viram, a consenso científico não recomenda o uso da ivermectina no combate à Covid-19. E, infelizmente (adoraríamos ter um remédio de custo baixo que curasse a doença), o estudo em questão (pelo menos por enquanto) não prova o contrário disso.

Para começar, a mensagem erra ao apontar que o estudo em questão foi promovido pelo SUS. Na realidade, o estudo foi realizado por um grupo de médicos que desde o começo defendem tratamentos com remédios como cloroquina e ivermectina.

O grupo, inclusive, já foi alvo de checagens como essa da Agência Lupa. Essa matéria do Metrópoles aponta que apenas dois dos mais de 200 profissionais são infectologistas. O grupo também perdeu um processo contra a Globo sobre uma matéria que mostrava que o tratamento com medicamentos como a cloroquina não curava a Covid-19.

Independentemente da autoria, há alguns detalhes que mostram que o estudo (pelo menos por enquanto) não é a “bala de prata” que prova que a ivermectina é a cura da Covid-19. Vamos listar apenas alguns.

O primeiro deles é o que o estudo ainda é pré-print. Não foi revisado por pares e nem publicado em uma revista científica. Há muito mais estudos que mostram que a ivermectina não é eficaz (inclusive utilizado como base para resoluções da OMS, FDA e CNS) que estão em um estágio mais avançado e estão balizados por publicações de peso. Ou seja: para o estudo adquirir um estágio mais avançado precisa mais do que viralizar no WhatsApp. Precisa ser reconhecido por publicações de peso.

O segundo ponto está na metodologia do estudo. Os resultados que apontariam que o uso da ivermectina reduz em 48% as mortes por Covid-19 (valor que, no caso de uma vacina, significaria rejeição de eficácia) não foram do chamado padrão ouro (com testes duplo-cego em ambiente controlado).

Além disso, algumas dúvidas pairam no ar. Uma delas, por exemplo, é como se deu o acompanhamento das pessoas que participaram da pesquisa. Como é possível saber se as pessoas que receberam o medicamento, de fato, tomaram o remédio? Como saber se as pessoas que não coletaram o medicamento pela prefeitura não tomaram o remédio por outros meios?

Como se chegou ao número de pessoas que não tomaram o medicamento? Foi uma pura e simples diminuição de número pessoas que pegaram o remédio com a população da cidade? De quando seria os dados? Estariam exatos (uma vez que os dados mais recentes do IBGE são por projeção de população)? Há chances de pessoas que morreram em Itajaí serem pessoas de outras cidades? Há chances de pessoas de outras cidades terem tomados a ivermectina?

Enfim, as perguntas mostram que, apenas com uma revisão de pares, poderiam ser respondidas algumas dúvidas. Até lá, não podemos dizer que o estudo valeria como bala de prata de que a ivermectina cura a Covid-19.

Outro ponto também nos chama atenção. A cidade utilizada no estudo é Itajaí. A escolha se deu porque a cidade resolveu aplicar um programa de “profilaxia” em massa com ivermectina. Só há um detalhe: essa matéria de janeiro de 2021 mostra que a cidade, mesmo com a ação, foi a que mais teve mortalidade por Covid-19 entre municípios com mais de 100 mil habitantes em Santa Catarina.

E aí temos mais uma pergunta (a última prometemos): se a ivermectina reduz mesmo as mortes por Covid-19, por que a cidade que aplicou o remédio em um grande número de pessoas não teve redução de mortes em relação a outras cidades?

Resumindo: nem o estudo que está sendo divulgado em redes sociais foi promovido pelo SUS tampouco ele é a prova de que a ivermectina, de fato, é um remédio que cura a Covid-19. No momento, a melhor opção para prevenção (com eficácia muito maior do que 48%) é a vacina (qualquer uma) contra a Covid-19.

Fonte: Boatos.org